segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

inventava a minha história num papel já molhado



Acorda Teresa , tens que ir para a escola!
_ Não tenho a primeira aula...
_ Dizes isso todos os dias !! não acredito que não tenhas ...
_ Não tenho mãe! Deixa-me dormir ...
_ Tens que ir , ainda chumbas ....

Voltava-me para o outro lado aninhada em lençois de algodão num colchão de espuma , numa cama estreita salpicada de flores alentejanas .
Tinha que ir...eu sabia que tinha que ir , estava quase chumbada por faltas , era só mais um bocadinho ... é só contar até cinquenta...

Fechava os olhos e imaginava o dia, tinha frio. Era sempre assim, construía uma história inventada.
Só imaginava aquele dia, que podia ser uma vida inteira.

...Será que o Zé já foi...? geralmente íamos juntos , apanhávamos o autocarro debaixo de chuva miudinha...

Comprei as galochas vermelhas , agora dormiam ao meu lado .
Finalmente !

_Teresa!! Eu vou trabalhar ... acorda ! tens que ir ...
_ Sim mãe ...estou a ir ...

Depois de acordar, ligava ao Zé...
“Olá é a Teresa...o Zé está?”
“Olá Teresa.... não, o Zé já foi para o Liceu.”
“ Há!! Obrigada...e não esperou por mim..? Se calhar tinha aulas cedo ...”

Ía sozinha ... esmagava as folhas no caminho ,sujava as galochas na terra e afogava-as em poças de água , sempre gostei do ruído das folhas secas.
A chuva caía devagarinho , chuva de “molha parvos” ...sorrria sozinha .

No autocarro, sentava-me sempre no segundo andar , olhando pela janela embaciada, via os passeios molhados e as árvores dançavam sem música. Fechava os olhos e quase adormecida , pensava em inventar uma vida, só para aquele dia ...
Nessa altura era assim mesmo , vivia um dia de cada vez .
Bastava-me pouca coisa .

O autocarro verde parava na paragem mesmo em frente ao Liceu. Saía e corria para o café mais perto , comprava tabaco e fósforos ...
_ Era um SG Filtro e uma caixa de fósforos das grandes, por favor ...

Entrava no Liceu, contente por dentro ... e distante por fora
Na sala de convívio , no meio de samarras de pele de raposa, tentava descobrir o Zé ...
Passava por toda a gente sem ver ninguém...
Tocava o “toque de entrada” ... tocava alto e estridente na sala de convívio ...eu ...simplesmente não o ouvia ...

_ Já chegaste Teresa !
Sorria-me e olhava-me pelo meio de dois enormes lagos azuis
_ Cheguei mesmo agora , não sabia que vinhas mais cedo...
_ Dá-me um cigarro ...
_ Mas ... tocou agora para a entrada ...
_ Não faz mal, não vou a esta aula ... tu vais ?

Tirava o maço de cigarros, com muito jeitinho , de dentro do bolso “Kanguro” da minha espécie de casaco azul
Abria o maço devagar , gostava de ficar com o plástico no maço .

_ Não ..não vou ...fico aqui contigo .

Sentados no degrau da sala de convívio, de mãos dadas, fumávamos cigarros quase sem dizermos nada ... acendíamos fósforos e deixávamos que ardessem até ao fim . Esborratávamos a palma da mão esmagando o pau de carvão, inventando letras na figura que se desenhava.

_ É um “C” !! calhou-te um C ... é suposto sair, na palma da mão, a primeira letra do nome do rapaz de quem mais gostas ... depois de esmagares o fósforo queimado ... calhou-te um C !
Eu ria ...
_ É muito difícil fazer um Z.... !
Sorrias-me e fazias bolinhas de fumo.

Eu fazia um ruído de borracha, com as minhas galochas vermelhas , no meio do silêncio que enchia a sala quase vazia .

_ Ensina-me a fazer isso , Zé ...
_ Se parares de fazer barulho com as galochas ...

Ensinavas-me com paciência , e assim se passava mais uma hora sem aulas .
Tocava para a saída . Continuávamos sentados no degrau, indiferentes ao barulho que começava .
Já não se ouvia o ruído de borracha e eu já sabia fazer argolas de fumo.
Pediam-me cigarros, eu dava ...
Ainda de mãos dadas, viviamos no meio de gente, aqueles dez minutos de intervalo .

Soavam outra vez as campainhas , olhei para ti.
_ Vais a esta aula ...?
_ Se calhar vou .

Depois do beijo de despedida , ficava a ver a multidão estridente a sair da sala .
Ainda sentada no degrau frio, fiquei sozinha comigo .

_ Teresa , não vais à aula ?
_ Não ... não me apetece ... eu espero aqui por ti

Comia bolos de arroz. Agora só comigo , escrevia “coisas” que me vinham à cabeça, num bloco pautado com um castelo desenhado na capa.

Escritos meus que ninguém lia...

Faltava à aula , inventava a minha história num papel já molhado e meio enxovalhado pela chuva miudinha .

TMQ

2 comentários:

Anónimo disse...

Teresa, um dia tenho que te conhecer!
És humana, és real ....com defeitos, qualidades, existes!

Anónimo disse...

Teresa, um dia tenho que te conhecer!
És humana, és real ....com defeitos, qualidades, existes!