quinta-feira, 7 de abril de 2011

Palmas compassadas que não ritmavam com as minhas


_é hoje o concerto! Temos bilhetes para um camarote !
_quantas pessoas podem estar no camarote ?
_ acho que cinco…
_Tens mesmo o bilhete do camarote? Onde é que o arranjaste ..?
_ não te digo !! tenho !! e é hoje ! …rias-te …

Esperávamos  há meses pelo concerto do Gilberto Gil , ao vivo no Coliseu . Ouvíamos todas as músicas, vezes e vezes sem conta.
O “Realce”, rolava no gira-discos, sempre para o mesmo lado e sem tonturas ! Ouvíamos e dançávamos, horas seguidas, tardes inteiras. Sabíamos as letras de cor.

“Realce …..Quanto mais porpurina …melhor …l ala la ….”

Pulávamos , e respirávamos tudo o que era positivo naquelas músicas que nos faziam crer que tudo, mesmo  tudo e apesar de tudo  …iria ficar sempre bem .

_ tens mesmo os bilhetes ??!! Eu nem acredito
- È um bilhete só , parva ! É um camarote …
_E quem é que vai ?
_ Vamos nós todos …
- Mas somos mais que cinco….
_Não faz mal, vais ver que cabemos lá todos .

Doía-me a barriga , a espera dava-me cólicas, ou formigueiro… as horas não passavam !

_ Põe o “Realce” outra vez …

O disco dançava connosco, sem saber o que nos fazia, rodava e rodava . A agulha gasta dava mais carácter aquela voz clara.

_ Jantas cá ?
_ Tenho que telefonar para casa …. A minha mãe vai já dizer que não …mas enfim …não vou perder este concerto nem por nada .

Peguei no auscultador do telefone , era preto e reluzia … disquei os números , 3---1---3---7---6---, nessa altura os telefones tinham poucos números  e eu gostava de prender o disco com força e ouvir o ruído da marcação do número.

_ Está …sou eu mãe…Olha ..? Posso jantara aqui … e ir ao concerto do Gilberto Gil , logo à noite ?
_ Olá filha, podes. Claro que podes, tem cuidado. Vai ver o Gilberto Gil que é muito bom. Por favor não venhas tarde.
_Posso mãe??!!     Posso mesmo ? – Está bem eu não vou tarde , prometo . Beijinho mãe, obrigada .

Desliguei o telefone , e nem queria acreditar …

_ Posso ir ! A minha mãe deixa-me, e posso jantar cá. A que horas vem a tua mãe ?
_ Sei lá, vem sempre tarde …fazemos uns ovos mexidos e vamos , temos que lá estar cedo .
_embora até ao café ver quem lá está …temos lugar para cinco !
_para cinco…ou mais !! quantos couberem ….

Ríamos sem parar.

Chegámos , devagar porque não corríamos , quase nunca corríamos .
Chegámos como quem não quer a coisa.

_Sabem que mais ???  temos um bilhete para um camarote , para ver o Gilberto Gil , hoje …

Olharam todos para nós como se nos estivessem a ver com cabeças de porco !

_ A sério ?!
_ Sim …a sério… quem é que quer vir ?

Todos queriam ir , claro . Mas o bilhete era só para cinco …

_ Os camarotes só têm cinco cadeiras …
_ Não faz mal , ficamos uns em cima dos outros …ficamos em pé !
_ Por mim tudo bem , se nos deixarem entrar …
_ Mas como é que tens o bilhete ?
_ aAranjaram-me …
_Quem ??
_ Um amigo da minha irmã , que conhece o Gilberto Gil ..
_ Mentirosa ! És tão mentirosa …ria-me...

Ninguém acreditou 
Dizias isto com um ar de quem não dá importância nenhuma .

Os rapazes olhavam uns para os outros , com olhos que falavam …. _ arranjas as cenas para logo ?

_ Ok arranjo, do melhor …
_Ok , mas vê lá o que é que arranjas , não quero gajos a mandarem-se do camarote lá para baixo  !

Ouvia e não queria saber se queria ouvir ou não.

“ Seja o que Deus quiser, é um concerto …e vou-me querer rir!” pensava sem fazer barulho .

Nem comemos nada de jeito, fomos todos fazer ovos mexidos com batatas de Pála- Pála , e engolimos uma comida sem sabor .

O disco continuava a rodar …sem parar, as colunas estavam no máximo, e dançávamos de prato na mão , depenicando bocadinhos de ovo e batatas fritas .
Desacertava-mos os passos ao som dum reage tão suave , tão envolvente …

Apanhámos o  44 , que nos deixava na Av. da Liberdade, depois era um instante até ao Coliseu .

Quando chegámos à porta, já se amontoava uma multidão que ansiava por entrar por ali dentro, ainda faltavam algumas horas para o concerto.

Bebemos cerveja num café , mesmo ali  em frente , bebemos cerveja até as portas , do Coliseu, abrirem …nem sei quantas cervejas bebemos .

Apagávamos os Sgs Filtros nos gargais das garrafas de cerveja  , os rapazes guardavam as pratas dos maços de tabaco , mais tarde faziam os cachimbos .
Entramos todos no meio dum enorme empurrão, quase que não havia controle nas entradas , e nós só queríamos ouvir o “Realce”  e o, …”no woman no cry……” ao jeito do Bob Marley  , cantarolávamos pelas escadas cima.

Cabíamos todos no camarote, eu fiquei  “à janela” , as meninas à frente para verem melhor , os rapazes atrás ..para arranjarem “as coisas” .

Fumávamos cigarros ,…. Naquele tempo fumava-se nos concertos do Coliseu.

O Gilberto Gil entro no palco, as luzes acenderam-se,  eu hipnotizei-me , imediatamente, pela enorme estrela dourada , pintada na sua cabeça , quando se voltou …vi que tinha uma Lua do outro lado

As luzes faziam com que brilhassem , faziam reflexos de pequenos cristais de caleidoscópio , eu olhava fascina … e …ia fumando o que me passavam para as mãos , cada vez mais feliz , embriagava-me no som , nas letras e naquela estrela virada para mim .

Não me voltava para trás , só sentia o calor de todos os corpos que se moviam perto de mim , ao som da música . Entre odores e fumo, não sentia mais nada , só o ritmo e o fascínio das luzes .
As luzes faziam brilhar a Estela e a Lua … que pareciam enormes …

Sem me aperceber , batia palmas sem ritmo …

Não acertava o compasso, as mãos não obedeciam ao ritmo da música que se instalava dentro de mim…

olhando para as pessoas , lá em baixo, pela “ janela “ do camarote, via toda a gente a bater palmas num compasso que já não era o meu , as luzes começaram a brilhar com mais intensidade….

Ia batendo palmas , assim como sabia , fumava o que me passavam para a mão , entre cigarros e cachimbos  ..Descompassava-me, cada vez mais.

Apercebi-me que me assustava, que já não compassava, que já não me sabia  obedecer , que já não “mandava” nos meus gestos, e a partir daquele momento…nunca mais fumei o que não sabia .

Depois de vários retornos ao palco, o Gilberto Gil acabou o espectáculo. Assobios que pediam mais , e mais .

Palmas compassadas que não ritmavam com as minhas  .
Saímos no meio duma massa de gente feliz, estavam felizes , pareciam felizes… todos se riam .
 Eu deixei de rir, assustada com o meu descompasso,

Voltámos para os Olivais. No caminho cantavam as músicas que ouviram no concerto, eu …estava calada , olhava-os com os olhos muito abertos …esperando que passassem as horas e que me conseguisse ritmar outra vez .

Demorámos imenso tempo a chegar aos Olivais , a mim pareceram-me horas infindáveis , as paragens estavam cheias de gente , que bem nos tinha sabido um carro naquela altura , mas carros ..não os havia assim para toda a gente .

Ríamos por isso mesmo e por tudo e mais alguma coisa

Chegámos ao “prédio” alto, nos Olivais , eu nem sabia como iria para casa …

Ficámos a “matar” o resto do tempo sentados nos degraus das portas , continuavam a fumar …. Eu não queria fumar mais nada . Já não me ria, já não me dava vontade de rir …

_ Vamos até minha casa? Ficamos lá um bocado…
_ Está bem , eu nem sei como vou para casa agora , tenho medo de ir sozinha…tenho que atravessar o Vale do silêncio ….a esta hora …e já foram todos para casa…

Entramos em casa, era mesmo ali,  no R/C , do prédio alto, nos Olivais .

Sentimos vozes e luzes na sala do sofá amarelo . Falavam brasileiro, parecia brasileiro , e naquela altura era tão bom ouvir falar brasileiro…
Ouvimos o som baixinho duma guitarra … alguém cantava , assim com uma voz exactamente igual  à que tínhamos estado a ouvir durante horas,

 Olhámos uma para a outra , incrédulas,  abrimos a porta da sala do sofá amarelo .

E sem acreditarmos, vimos quem cantava assim tão suavemente. Sentado no sofá amarelo, acompanhado com mais duas ou três pessoas , estava o Gilberto Gil, horas depois do espectáculo, a tocar ali,  naquela casa no meio dos Olivais.

_ Tu estás acreditar no que estás a ver…?
_Não …não estou

Desatámos a rir … mas porque raio é que o Gilberto Gil ali estava ….?!

_-tu sabias que o Gilberto Gil vinha para tua casa ?
_ Eu não !?

“..não …não chore mais …. No woman no cry…..”…. os dedos brincavam com as cordas da guitarra .

Parecia não estar a acreditar no que via
_ Mas olha lá …que raio de coisa esta …mas porque raio está o Gilberto Gil em tua casa …?

 “ …quanto mais purpurina …melhorrr….”    e recordava a música , e a estrela agora já não brilhava tanto..nem a lua , eram douradas , pintadas a ouro .

_ Espera …vou perguntar à minha irmã … o que se passa aqui …

“realce…..realce….quanto mais serpentina  melhorrrrr….”…
.
o susto já me tinha passado, e meio embasbacada , sentava-me na pontinha do sofá amarelo , ele sorria-nos com uns dentes tão brancos e com uma voz que nem se explicava ,,,,

“..não desepera quando a vida fere fere …realce …realce quanto mais serpentina 
melhorrrr….quanto mais purpurina ..melhorrr …”

_ Já sei ….já perguntei à minha irmã , parece que o  motorista do Gilberto Gil , é amigo da minha irmã…e resolveram vir cá para casa no fim do espectáculo ….

Olhei com os olhos muito abertos ….Desatámos a rir às gargalhadas … sempre queríamos ver se amanhã, os outros acreditavam em nós …

_ hahaha , amanhã ninguém acredita em nós !

Ríamos e ríamos e começávamos a cantarolar as músicas que ele nos tocava , assim como um presente que nos dava , entre cervejas , cigarros de fumo e gargalhadas espalhadas no meio do som .

_ Eu nem acredito … phá! Mas que raio de coisa…e tu sabias disso
_ Eu não …

E assim ouvimos um mini- concerto , depois dum grande concerto, o mais inesperado da minha vida .

Ficámos por ali sentados no chão, encostados ao sofá amarelo ,  até o Sol nascer e a Lua adormecer... 

TMQueiroz






quinta-feira, 31 de março de 2011

Os nossos passos , descompassavam-se do resto.

                                                    



_ Pára de rir, que eu já não aguento mais ! Já me dói a barriga…


Ríamos, ríamos por tudo e por nada . A caminho do Rock Rendez-Vous, tropeçávamos nas nossas gargalhadas.



Apanhávamos o 31 , naquela altura os autocarros mudavam de cor, devagarinho… , e este já era cor de laranja, moderno e sem o andar de cima. Já não eram mágicos , estes autocarros .



Agarrados ao corrimão, nunca nos queríamos sentar nos bancos feios e acinzentados .



Parávamos na Rua da Beneficência e….
Ríamos, ríamos o caminho todo, ríamos por tudo e por nada , só porque tudo nos fazia rir.



As matines começavam às quatro da tarde, às quartas feiras, lá no Rock Rendez-Vous .



_Quem é que vai tocar hoje, sabes…?
_Não , mas o Zé Pedro disse que tocava lá esta semana …
_Mas os Xutos só tocam à noite…
_Pode ser que toquem hoje .



Já não nos importava quem tocava, caminhávamos a rir, entrávamos porta dentro…a rir …e ficávamos horas a rir e a ouvir aquilo que nos davam .



_ Porque é que eles não quiseram vir …? 
_ Não sei , agora gostam mais de ir ao Bit Club…
_Betinhos !! dizia com soluços de riso .



Entrámos , depois de esperarmos uma hora, à porta do mágico Rock Rendez-Vous .
A Lena D água, cantava com os Salada de Frutas …



“Olha o Robot….. llalalalala….Olha o Robot” 



Na sala, que me parecia muito grande , amontoavam-se corpos quase uns em cima dos outros, pulavam em jeito de dança, e gritavam todas as músicas que já sabiam de cor .



No chão rolavam garrafas de cerveja já vazias, o pó misturava-se com os restos de cerveja, e o chão ganhava uma nova patine, muito , muito escorregadia.



_Ía caindo !! -- gritavas a rir às gargalhadas – quase não se pode andar aqui 



Olhei para o chão e só via vidros castanhos de garrafas partidas .



_ Os Xutos tocam esta noite , depois da matiné !! 
_Não posso ficar, tenho que ir para casa à hora do jantar, e amanhã tenho aulas…
-Que se lixe…. Ficamos 



E ficámos. 



Os nossos pulmões quase que deixavam de funcionar, entre o riso e o fumo que se acumulava na sala e fazia uma nuvem , na qual as luzes reflectiam. 
Ainda era de dia, mas lá dentro estava muito escuro.



_Então o melhor é nem sairmos daqui… senão, não vamos conseguir entrar mais tarde .



Não comíamos, bebíamos cerveja, sentadas no chão escorregadio, bastava-nos a cerveja como alimento, o fumo como sustento e a música como alento.



Procurava um cantinho mais “limpo” onde me pudesse sentar, de pernas cruzadas, continuava a ouvir os Salada de Fruta. Não nos importávamos com o som, o som permanecia nos nossos ouvidos, e cantarolávamos (quando não gritávamos) as músicas já nossas conhecidas.



A Lena Dágua, com um cabelo comprido, que lhe tapava a cara , rodopiava no palco ,dava voltas no seu vestido estampado. 



Cantava bem , voz fininha, que mesmo em gritos não se desafinava. O baterista , batia o seu compasso.



Os nossos passos , descompassavam-se do resto. 



Cansada , encostava-me à parede e esperava pela noite, com um sorriso nos lábios, já cansada de tanto rir .



_Tens a certeza que os Xutos tocam aqui hoje ?! 
_ Tenho, pelo menos o Zé Pedro disse que sim .



Lembro-me do Zé Pedro no D.Dinis, lembro-me dele nos Olivais Norte. E, Norte e Sul sempre foram uns rivais muito amigáveis . 



Lembro-me dos Xutos ensaiarem numa garagem , lá para os lados da Portela .



_ Vamos ter que esperar aqui…? Eu não avisei nada em casa…
_Deixa lá, quando chegares… chegaste !!! rias , feita parva … 



Encolhi os ombros ( não havia telemóveis ) , não havia por ali nenhuma cabine. E se saísse já não conseguia entrar. 



Às sete da tarde já havia uma multidão na Rua da Beneficência , esperavam poder entrar no Rock Rendez-Vous. E tantas vezes esperavam horas , sem arredar pé.



Os porteiros eram enormes, escolhiam meticulosamente, que podia ou não podia entrar. Se estivessem alcoolizados, ou sob o efeito de qualquer outra coisa --- já não entravam .



Havia um risco amarelo, pintado no chão, à entrada, o risco fazia o papel de corda bamba e tal qual equilibristas de circo, rapazes e raparigas tinha que o pisar com, jeitinho, só para provarem que se equilibravam .



Já estávamos lá dentro e não tínhamos saído…assim fiquei com um lugar à frente, quase a tocar no palco. Dançava ao som de discos de vinil, no meio dos compassos de espera.



Bebíamos mais porque tínhamos fome, fumávamos para enganar o tempo. 
Agora esperávamos pelos Xutos …



_mas tens a certeza que os Xutos tocam hoje …?!
_Olha, parva ! Olha para o cartaz ! o que é que diz ?



Olhámos ao mesmo tempo, o cartaz anunciava os Xutos às 9 da noite.
Começámos a rir outra vez , e só parámos quando os Xutos começaram a tocar .
Entraram no palco, todos ao mesmo tempo, o Tim tinha sempre um lenço no pescoço, estavam todos de óculos escuros . 



O Zé Pedro, tinha várias pulseiras de couro e correntes que se prendiam ao meu olhar fascinado . 



Entre guitarras , baterias, microfones e amplificadores enormes , tomavam os seus lugares , e sorriam-nos, com sorrisos especiais .
Com um ar tão “duro” aquela banda , tão nova … deliciava qualquer um . 
Eu gostava do guitarrista, do outro …



_ Como é que se chama este que está aqui a tocar … mesmo aqui …?
_ Não sei …
_Não sabes ? 
_ Há ---- esse é o João … não me lembro do outro nome 



Eu olhava o guitarrista dos Xutos , que tocava mesmo ao pé de mim, indiferente aos pulos que me rodeavam , passei o concerto todo a olhar para a guitarra .
A sala era pequena para tanta emoção, a sala era pequena para tanto talento, era pequena para tanto som que se começava a soltar por ali.



À minha volta todos riam , os cotovelos que me batiam , já não me magoavam …
Embriagada pelo som da guitarra, pelos dedos que a percorriam, pela cerveja que já não me lembrava de ter bebido, inspirava as nuvens de fumo que me secavam a garganta e me apuravam os sentidos .



Nas paredes, os cartazes pardos , amarelados , anunciavam os UHF , para a próxima semana.



Já sei que na próxima semana não vou poder vir, não disse nada em casa…. Nem sabem de mim…



Afastei tudo o que me incomodavam , e comecei a pular em frente ao palco, com pulos tão altos que quase me lançavam para o meio da guitarra do guitarrista …que se chamava João…



_ Como é que ele se chama? …este, que está mesmo aqui, mesmo á minha frente ! ….?
_Já te disse… deves ter ensurdecido com tanto barulho !
_ Estou quase surda ….sorria, e prolongava o sorriso numa gargalhada infernal .



Olhámos uma para a outra sem parar de rir 



_ Chama-se João --- acho que é João ----

....................
TMQueiroz 

Os nossos passos , descompassavam-se do resto.

                                                    


_ Pára de rir, que eu já não aguento mais ! Já me dói a barriga…

Ríamos, ríamos por tudo e por nada . A caminho do Rock Rendez-Vous, tropeçávamos nas nossas gargalhadas.

Apanhávamos o 31 , naquela altura os autocarros mudavam de cor, devagarinho… , e este já era cor de laranja, moderno e sem o andar de cima. Já não eram mágicos , estes autocarros .

Agarrados ao corrimão, nunca nos queríamos sentar nos bancos feios e acinzentados .

Parávamos na Rua da Beneficência e….
Ríamos, ríamos o caminho todo, ríamos por tudo e por nada , só porque tudo nos fazia rir.

As matines começavam às quatro da tarde, às quartas feiras, lá no Rock Rendez-Vous .

_Quem é que vai tocar hoje, sabes…?
_Não , mas o Zé Pedro disse que tocava lá esta semana …
_Mas os Xutos só tocam à noite…
_Pode ser que toquem hoje .

Já não nos importava quem tocava, caminhávamos a rir, entrávamos porta dentro…a rir …e ficávamos horas a rir e a ouvir aquilo que nos davam .

_ Porque é que eles não quiseram vir …? 
_ Não sei , agora gostam mais de ir ao Bit Club…
_Betinhos !! dizia com soluços de riso .

Entrámos , depois de esperarmos uma hora, à porta do mágico Rock Rendez-Vous .
A Lena D água, cantava com os Salada de Frutas …

“Olha o Robot….. llalalalala….Olha o Robot” 

Na sala, que me parecia muito grande , amontoavam-se corpos quase uns em cima dos outros, pulavam em jeito de dança, e gritavam todas as músicas que já sabiam de cor .

No chão rolavam garrafas de cerveja já vazias, o pó misturava-se com os restos de cerveja, e o chão ganhava uma nova patine, muito , muito escorregadia.

_Ía caindo !! -- gritavas a rir às gargalhadas – quase não se pode andar aqui 

Olhei para o chão e só via vidros castanhos de garrafas partidas .

_ Os Xutos tocam esta noite , depois da matiné !! 
_Não posso ficar, tenho que ir para casa à hora do jantar, e amanhã tenho aulas…
-Que se lixe…. Ficamos 

E ficámos. 

Os nossos pulmões quase que deixavam de funcionar, entre o riso e o fumo que se acumulava na sala e fazia uma nuvem , na qual as luzes reflectiam. 
Ainda era de dia, mas lá dentro estava muito escuro.

_Então o melhor é nem sairmos daqui… senão, não vamos conseguir entrar mais tarde .

Não comíamos, bebíamos cerveja, sentadas no chão escorregadio, bastava-nos a cerveja como alimento, o fumo como sustento e a música como alento.

Procurava um cantinho mais “limpo” onde me pudesse sentar, de pernas cruzadas, continuava a ouvir os Salada de Fruta. Não nos importávamos com o som, o som permanecia nos nossos ouvidos, e cantarolávamos (quando não gritávamos) as músicas já nossas conhecidas.

A Lena Dágua, com um cabelo comprido, que lhe tapava a cara , rodopiava no palco ,dava voltas no seu vestido estampado. 

Cantava bem , voz fininha, que mesmo em gritos não se desafinava. O baterista , batia o seu compasso.

Os nossos passos , descompassavam-se do resto. 

Cansada , encostava-me à parede e esperava pela noite, com um sorriso nos lábios, já cansada de tanto rir .

_Tens a certeza que os Xutos tocam aqui hoje ?! 
_ Tenho, pelo menos o Zé Pedro disse que sim .

Lembro-me do Zé Pedro no D.Dinis, lembro-me dele nos Olivais Norte. E, Norte e Sul sempre foram uns rivais muito amigáveis . 

Lembro-me dos Xutos ensaiarem numa garagem , lá para os lados da Portela .

_ Vamos ter que esperar aqui…? Eu não avisei nada em casa…
_Deixa lá, quando chegares… chegaste !!! rias , feita parva … 

Encolhi os ombros ( não havia telemóveis ) , não havia por ali nenhuma cabine. E se saísse já não conseguia entrar. 

Às sete da tarde já havia uma multidão na Rua da Beneficência , esperavam poder entrar no Rock Rendez-Vous. E tantas vezes esperavam horas , sem arredar pé.

Os porteiros eram enormes, escolhiam meticulosamente, que podia ou não podia entrar. Se estivessem alcoolizados, ou sob o efeito de qualquer outra coisa --- já não entravam .

Havia um risco amarelo, pintado no chão, à entrada, o risco fazia o papel de corda bamba e tal qual equilibristas de circo, rapazes e raparigas tinha que o pisar com, jeitinho, só para provarem que se equilibravam .

Já estávamos lá dentro e não tínhamos saído…assim fiquei com um lugar à frente, quase a tocar no palco. Dançava ao som de discos de vinil, no meio dos compassos de espera.

Bebíamos mais porque tínhamos fome, fumávamos para enganar o tempo. 
Agora esperávamos pelos Xutos …

_mas tens a certeza que os Xutos tocam hoje …?!
_Olha, parva ! Olha para o cartaz ! o que é que diz ?

Olhámos ao mesmo tempo, o cartaz anunciava os Xutos às 9 da noite.
Começámos a rir outra vez , e só parámos quando os Xutos começaram a tocar .
Entraram no palco, todos ao mesmo tempo, o Tim tinha sempre um lenço no pescoço, estavam todos de óculos escuros . 

O Zé Pedro, tinha várias pulseiras de couro e correntes que se prendiam ao meu olhar fascinado . 

Entre guitarras , baterias, microfones e amplificadores enormes , tomavam os seus lugares , e sorriam-nos, com sorrisos especiais .
Com um ar tão “duro” aquela banda , tão nova … deliciava qualquer um . 
Eu gostava do guitarrista, do outro …

_ Como é que se chama este que está aqui a tocar … mesmo aqui …?
_ Não sei …
_Não sabes ? 
_ Há ---- esse é o João … não me lembro do outro nome 

Eu olhava o guitarrista dos Xutos , que tocava mesmo ao pé de mim, indiferente aos pulos que me rodeavam , passei o concerto todo a olhar para a guitarra .
A sala era pequena para tanta emoção, a sala era pequena para tanto talento, era pequena para tanto som que se começava a soltar por ali.

À minha volta todos riam , os cotovelos que me batiam , já não me magoavam …
Embriagada pelo som da guitarra, pelos dedos que a percorriam, pela cerveja que já não me lembrava de ter bebido, inspirava as nuvens de fumo que me secavam a garganta e me apuravam os sentidos .

Nas paredes, os cartazes pardos , amarelados , anunciavam os UHF , para a próxima semana.

Já sei que na próxima semana não vou poder vir, não disse nada em casa…. Nem sabem de mim…

Afastei tudo o que me incomodavam , e comecei a pular em frente ao palco, com pulos tão altos que quase me lançavam para o meio da guitarra do guitarrista …que se chamava João…

_ Como é que ele se chama? …este, que está mesmo aqui, mesmo á minha frente ! ….?
_Já te disse… deves ter ensurdecido com tanto barulho !
_ Estou quase surda ….sorria, e prolongava o sorriso numa gargalhada infernal .

Olhámos uma para a outra sem parar de rir 

_ Chama-se João --- acho que é João ----

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TMQueiroz