quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A minha bagagem é esta , está aqui tudo o que preciso ...




“_ Sabes quem morreu, Teresa ?

Virei-me.

_Não
_O Zé Chinês ...
_Morreu??!!....
_ Estava já há que tempos no hospital...morreu, com SIDA.

Sem palavras e um aperto , um desconsolo, uma raiva fininha. Mais um... “

O quarto do Zé era algo muito especial, passávamos tardes inteiras a ouvir música baixinho, iluminados por luzes foscas de candeeiros baixos, tapados com panos chineses . 
As almofadas e o colchão no chão faziam com que ficássemos todos perto uns dos outros.
Nas paredes , folhas de papel com desenhos cuidados , feitos a tinta da china. O Zé passava dias a fazer um desenho cheio de espirais , círculos e símbolos chineses, tudo preto e branco..riscos grossos...riscos finos..

A luz era vermelha , um vermelho quase escuro. 

Falávamos baixinho e devagarinho, naquele quarto tudo convidava a um estado quase inconsciente de slow motion. Eu via-lhes as caras no meio de fumo.
O Zé quase nunca abria a janela, lá em casa estavam todos proibidos de entrar no quarto dele . Assim ficávamos durante horas, nem ríamos , nem gargalhávamos.
Sorriamos .
Na sala ao lado , a mãe do Zé passava a tarde com as amigas a jogar um jogo chinês interminável, de vez em quando ouvia palavras que não entendia ditas por vozes fininhas . As senhoras tomavam chá de jasmim, jogavam seriamente e falavam pouco.
Quando passávamos na sala olhavam-nos com os olhos pequeninos e rasgados e com um sorriso permanente cumprimentavam-nos com um  leve acenar de cabeça,  quase como uma vénia .
Era tudo tranquilo naquela casa .

_ Vou-me embora para Macau...
_ Vais ?! Quando?!
_ Vou este fim de semana. O meu pai mandou-me chamar, diz que estou lá melhor do que aqui...
_ E vais assim sem mais nem menos ?!
_Sim vou , durante uns meses...

Eles falavam baixinho e eu ouvia calada. 
O pai do Zé era militar e estava em Macau já há muitos anos, a família estava toda em Lisboa.
Agora o Zé ia para Macau.
Acabavam-se as tardes tranquilas, já começava a ter saudades do seu sorriso afável e da sua simpatia tão natural.

_Ok , mas vê lá ...aquilo lá não é fácil...
_ Sim eu sei, o meu pai já tem tudo preparado para mim.
_ Vamos contigo ao aeroporto !
_ Não, não quero lá ninguém. Despedimos-nos hoje , aqui.
_ Ok, mas quando vieres vamos esperar-te ..
_ Combinado.

Passaram meses e o Zé continuava em Macau, de quando em vez sabíamos notícias dele através da mãe e do irmão . Mas não muitas,  que eram todos de poucas falas .
 Por vezes escrevíamos postais divertidos, todos em conjunto, que metíamos no correio , comprávamos selos na papelaria. Inventávamos “parvoeiras” para o Zé , e contávamos tudo o que por cá se ia passando. 
Agora sem o quarto dele "matávamos" as tardes à porta do prédio.



_ O Zé chega amanhã !
_ A Sério ?? vamos ao aeroporto buscá-lo.
Combinámos a viagem , a pé, até ao aeroporto. Fizemos sandes de fiambre e comprámos laranjinas na mercearia, preparávamos a excursão para o aeroporto.
Acordámos de manhã , e com tanta excitação já não pensámos em  mais nada, era o dia em que o Zé chegava. 
 Nem ele imaginava o vazio que tinha cá deixado. A sua presença calada enchia-nos de sossego.
Tínhamos saudades.

Em romaria fomos para o aeroporto horas antes do avião chegar. 
Sentados no chão , comíamos as sandes , ríamos e recordávamos todas as histórias do Zé, o seu quarto, os seus desenhos, a sua companhia .
O Avião chegou e  fomos todos para a porta de desembarque .Lá ao fundo, víamos uma figura pequenina , de cabelo muito preto, com uma franja comprida que lhe tapava os olhos e que ele continuamente atirava para trás com a palma da mão.

O Zé chegou sorridente, mais magro e com um rádio enorme numa das mãos . Era a sua bagagem de mão.
Abraços, beijos , risos e gargalhadas.
O Zé estava feliz , nem esperava uma recepção tão entusiasta.
_ Então não trazes bagagem ?!
_ A minha bagagem é esta , está aqui tudo o que preciso...

Olhámos uns para os outros sem perceber, e sem fazer caso continuámos a conversar a perguntar , a querer saber tudo . Como era em Macau ? ..a Vida? ...as pessoas...? gostaste de lá estar? E os casinos ?...foste aos casinos ?.... e a língua ? falavam muito chinês ? ..já aprendeste chinês ...? e estiveste a trabalhar, lá?...e o teu pai...? e vivias onde, mesmo na cidade?

Tantas perguntas que ficavam sistematicamente sem resposta. O Zé sorria ia dizendo que sim a tudo, e estava ansioso para voltar a ver o seu misterioso quarto.
Continuámos a romaria, agora no sentido contrário. 
Todos a falar ao mesmo tempo, e o Zé calado, com o seu rádio enorme que me pareceu pesar muitíssimo .
Chegámos ao prédio. 
Finalmente o Zé estava em casa .

Começaram todos a dispersar...
_Bem, vou andando tenho que ir estudar ...
_Eu também vou....
_Eu Também... adeus Zé amanhã contas como foi , hoje estás com um ar cansado ...
Ficámos só nós os três . Amigos de toda a vida .

O Zé agora sorria com um sorriso rasgado.
_ Querem vir até lá a casa?
Olhámos uns para os outros...
_ Sim vamos ...

Sentados em almofadas, novamente no quarto mágico, observávamos o Zé a “abrir” o rádio com muito cuidado.
Com uma chave de parafusos, desaparafusava tudo com “paciênciade chinês”. Não dizia nada , só sorria . 
E nós olhávamos um para o outro sem perceber nada .

_ Espera, já vais ver.

Enquanto eles falavam eu ia olhando os desenhos na parede, já tinha saudades.

Finalmente o rádio estava todo desmanchado...
_ O que é isso, Zé  ?!

Dentro do rádio saíam pequenas embalagens de plástico, uma qualquer coisa lá dentro , entre branco e acastanhado. 
Eu olhava embasbacada .

_ Heroína.

_ Heroína ?! Mas tu estás maluco ?? com isso tudo dentro do rádio...se fosses apanhado ias de “cana” uma data de tempo... onde é que arranjaste isso tudo..? e para quê ...não me digas que...
_ Tinha que trazer. Em Macau não há haxixe, quase nunca se encontra... e a heroína anda para lá aos pontapés e é muito mais barata ... troquei o haxe por isto... E tinha que a trazer comigo.

Eu estava completamente arrepiada com aquela conversa e depois de ver tudo aquilo espalhado pelo chão do quarto. Um quarto tão misterioso, tão “nosso”... e que em pouco tempo se iria transformar em nada. 
Não dizia nada , só ouvia e quanto mais os ouvia falar mais assustada ficava .

_Bem, vou ter de me injectar, estou a ficar aflito.
_ Está bem ... nós vamos andando...
_ Fiquem aqui comigo...


O Cenário era “de filme”, agora aquela meia luz avermelhada já não me acalmava , parecia que gritava sem se ouvir . 
O Zé começou por tirar uma seringa enorme dentro dum estojo de metal, junto da seringa estava um garrote de plástico amarelado. Começou a desfazer a droga numa colher de sopa, aquecia a colher com fósforos grandes que se iam apagando.
Eu arregalava os olhos e nem queria acreditar que ele se fosse picar com aquilo.

Já tinha ouvido falar de drogas pesadas, não muito... sabia que quem se viciava , destruía a vida , roubava , fugia, mentia ... naquela altura ainda não sabíamos como aquilo acabava .

Depois de tudo preparado , e antes de se injectar , o Zé na sua genuína simpatia e boa educação... disse:
_ Querem...?  estendia-nos o braço que segurava a enorme seringa.

Vi uns enormes olhos pretos a olhar para mim, parecia que me interrogavam... calados , esperavam a minha resposta .

_ Eu não! Disse num sussurro gritado e assustado.

_ Eu também não Zé ... Tu vê lá isso .... ainda vais acabar mal .
_ Não te preocupes, eu tenho tudo controlado, só tenho que ter cuidado para não injectar mais que o costume...tenho medo é das overdoses...

Levantei-me num pulo .
_ Vamos embora ?! tenho que ir para casa , já está quase de noite .
_ Vamos sim, eu levo-te ... adeus Zé, até amanhã, vou levar a Teresa. Depois falamos ...

Fomos calados até à paragem. 
Ouvíamos os ruídos do estômago um do outro, os soluços contidos e o ranger dos dedos .

Chegou o 21.


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

...azul clara, azul escura, azul turquesa...azul escura, azul clara, azul turquesa...




 Vamos fazer o quê ?! ... não me apetece ficar aqui sentada toda a tarde 
_ Vamos ao café ... 
_ Outra vez ?! ..ainda agora lá estivemos ...


Sentadas na sala da Rosa , conversávamos sem quase nada para dizer , abríamos a janela para deixar sair o cheiro a tabaco.
_ Quem é que lá estava ? 
_Onde, no café ? o costume, não viste ?! O Diogo, o Cruz , o Zé chinês e o FL ...
_ O FL estava lá? nem reparei ... Rosa ! apetecia-me ficar apaixonada, assim de repente !
Ríamos e nada tomávamos como ridículo . O sofá era incómodo , mas a nós nada nos incomodava.



_ Embora ao café.
_ Ainda agora disseste que não querias ir ...
_ Agora já quero – sorria com um sorriso só meu , cúmplice comigo mesma .
_ E agora vais-te apaixonar por quem ? hum...deixa-me ver... O Cruz não de certeza, é muito pequenino! Não é nada o teu estilo, O Zé chinês também não me parece... o Diogo nem pensar ! .... só pode ser o Fernando , claro! Vai ser pelo FL ! Vamos ... embora lá ver .
_ Não sejas parva Rosa, essas coisas não são assim...só disse que me apetecia estar apaixonada. Tenho que viver a minha vida toda, apaixonada, senão , não tem graça nenhuma andarmos por cá...




No Brisa do Tejo, mesmo em frente ao prédio da Rosa, a esplanada estava vazia de gente . Na mesa do canto ainda lá estavam todos , uma mesa cheia de cafés bebidos e copos de água já secos, garrafas de cerveja já meio bebidas, meio mortas . 
O Diogo falava alto e “arriscava a vida”, apostado em beber uma chávena de café, cheia de todos os restos possíveis que habitavam naquela mesa. 
Cinza , restos de café , pacotes de açucar, tabaco ,migalhas de bolos, água , cerveja... misturava tudo meticulosamente, com uma colher pequenina e com um cuidado exagerado.
_ Diogo , não és capaz ! 
_ Espera, tenho que mexer tudo muito bem até ficar líquido , depois bebo tudo duma só vez . 
_ Aposto vinte paus em como não consegues beber essa nojeira ! 



O Diogo era mesmo assim, conhecido pelos seus discursos intelectualizados , os seus dentes amarelados e uma inteligência de fazer inveja a muitos, naquela mesa sentados . 
Depois de tudo bem desfeito, o Diogo bebeu tudo até ao fim , levantou-se e foi-se embora . 
_ Cruz, dá cá os vinte paus ...
_ Bebeste aquela porcaria toda ?! estivemos a fazer da tua chávena cinzeiro !!!! ... que nojo Diogo!
O Diogo continuava a sorrir o seu sorriso irónico e amarelo, pegou na nota de vinte e foi-se embora .
_ Vou-me embora, vou estudar .
_ Se te sentires mal diz...



Gargalhada geral ! O FL não ria...



Sentadas nas cadeiras ainda quentes, cruzávamos as pernas e não dizíamos nada na esperança de chamar a atenção de quem estava tão distraído. 
Não deram pela nossa saída , nem pela nossa chegada . 



O FL bebia um café atrás do outro. 
Eu olhava embasbacada para as suas mãos que tremiam como se tivessem vida própria. Era a primeira vez que reparava nas tremuras do FL. 
Tremia e não controlava o café dentro da chávena, entornava tudo para o pires... e pedia outro, e mais outro...
Nunca tinha reparado naquelas mãos, que tremiam em silêncio.
O FL fazia pouco barulho, nunca tinha reparado naquela camisa de xadrez azul , que tantas vezes vestia...



azul claro, azul escuro, azul turquesa...azul claro, azul escuro, azul turquesa...



Nunca tinha repara nas patilhas que lhe tapavam quase metade da cara... nunca tinha reparado que os olhos eram tão pretos. 
Nunca o tinha visto no D. Dinis... 
Naquele dia reparei ,e não descansei de reparar até ao dia em que parou de tremer. 



_ Rosa... já viste bem como o FL treme ? .. nunca tinha dado por isso ... Ele anda no Padre não anda ? Não anda lá no Liceu... nunca o vi lá...
_ Sim, anda no Padre António Vieira, ele e o irmão. Pois treme, sempre tremeu assim.
_ Bolas!! Até faz impressão ... acho que deve andar a fumar demais, ou cafés a mais...
_ Teresa, os gajos fazem uns cachimbos de prata e metem o haxe lá dentro, aquilo fica muito forte, deve ser disso..
_ Deve ser... eles fazem um a seguir ao outro, que eu já vi, é sempre um cachimbo a seguir ao outro...
Saí dali depressa, nunca tinha reparado com olhos de ver , nunca tinha pensado, sempre achei que os rapazes eram fortes , sempre achei que sabiam mais ou menos o que faziam, sempre achei que nos protegiam ...
_ Vamos Rosa, embora até tua casa. Estou farta de estar aqui .



Outra vez, sentadas no sofá amarelado , na sala da Rosa.
Eu olhava pela janela e via as pessoas passarem na rua , não sabia o que pensavam , desejei nunca saber. 
Olhava para além de nada, fechava os olhos e só e via as mãos trémulas que não sabiam segurar a chávena , os olhos pretos ...envergonhados...



azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul escuro, azul claro, azul turquesa...



Nunca tinha reparado, nem nunca tinha pensado com modos de pensar.
A Rosa fumava cigarros, uns atrás dos outros.
_ Assim, vou acabar o maço antes da minha mãe chegar a casa...
_ A que horas chega a tua mãe, Rosa?



Acendia fósforos e deixava que se queimassem no cinzeiro.



_ Só quando estiver de noite...
_ Vou-me embora.
Chegava a hora de ir para casa, apanhava o 21 e depois andava um bocadinho, tinha de ir antes que ficasse muito escuro



Saí de casa, a Rosa morava no Rés do Chão, assim que abri a porta da rua estavam todos sentados nas escadas, meio escondidos pelas plantas altas que a porteira teimava em cuidar.
Construíam cachimbos de prata, desfaziam tabaco nas palmas das mãos ...



_ Já vais Teresa ...
Olhei e vi uns olhos enormes, maiores que o normal, que me olhavam para além de mim.
_ Já. Tenho que ir antes que fique de noite. E já vou atrasada.
_ Vais apanhar o 21...?
_ Vou.
_ Espera, eu lévo-te à paragem ...
Mãos trémulas dentro dos bolsos das calças, era assim que ele costumava andar , sempre de mãos nos bolsos, agora eu percebia porquê.



...azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul claro, azul escuro, azul turquesa...



_ Não é preciso, é já aqui ...
_ Não ! Eu levo_te
Estavam todos em silêncio, com muita atenção ao diálogo que mantínhamos, timidamente, quase só por sílabas.
O Fernando nunca falava muito. Comprava todos os discos que podia , e escolhia músicas como só ele sabia escolher. Raramente lhe ouvia a voz.



_ FL ! Vais levar a Teresa?? !! .... não acredito !..
Outra gargalhada geral.
_ O Baleia está apaixonado !!!!!
Eu corava e sorria, só queria fugir dali para fora. Senti uma mão firme e suave que me segurava o braço, sem força.
_ Vamos, eu levo-te!



Na rua estava frio e o FL tremia dentro da sua camisa de xadrez, azul clara , azul escura, azul turquesa...



...azul clara, azul escura, azul turquesa...azul escura, azul clara, azul turquesa...



_ faz-me impressão que tremas tanto, não gosto nada de ver. Senti assim um aperto na barriga, hoje... quando olhei para ti...sabes ..? nunca tinha reparado ...
_ Deixa lá, não te preocupes ...um dia passa... eu já tinha reparado em ti ...muitas vezes...
Falava sem olhar para mim, já não me olhava nos olhos .



Engolia as palavras, o meu peito saltava , fazia tanto barulho que tinha medo que se ouvisse cá fora.
Mantinha o meu olhar , aquele que parece não querer dizer quase nada .
Olhei para os seus enormes olhos pretos e sorri-lhe.
_ Vem aí o 21...



_ Até amanhã Teresa ...amanhã vens cá ? ...a casa da Rosa... ou aqui ao prédio, sei lá...costumas vir ...?



Fiquei calada , não encontrava as palavras certas.
E de repente , antes que o autocarro partisse ...
_ Sim venho, venho todos os dias ...se me prometeres que vais deixar de tremer.



Entrei no 21, atrás de mim entrou o FL quase sem eu dar por isso .



_ Vou contigo até tua casa ...ainda tens de andar um bocado desde a paragem, não tens ?... não quero que vás sozinha. Eu depois venho a pé , até me faz bem ...queres ir amanhã a Sintra , de comboio, a Sintra...queres?
_ Quero...



E desde esse dia, nunca mais apanhei o 21 sozinha . 
E desde esse dia , o FL começou a deixar de tremer .



...azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul claro, azul escuro, azul turquesa...
azul claro, azul escuro, azul turquesa....



TMQueiroz


inventava a minha história num papel já molhado



Acorda Teresa , tens que ir para a escola!
_ Não tenho a primeira aula...
_ Dizes isso todos os dias !! não acredito que não tenhas ...
_ Não tenho mãe! Deixa-me dormir ...
_ Tens que ir , ainda chumbas ....

Voltava-me para o outro lado aninhada em lençois de algodão num colchão de espuma , numa cama estreita salpicada de flores alentejanas .
Tinha que ir...eu sabia que tinha que ir , estava quase chumbada por faltas , era só mais um bocadinho ... é só contar até cinquenta...

Fechava os olhos e imaginava o dia, tinha frio. Era sempre assim, construía uma história inventada.
Só imaginava aquele dia, que podia ser uma vida inteira.

...Será que o Zé já foi...? geralmente íamos juntos , apanhávamos o autocarro debaixo de chuva miudinha...

Comprei as galochas vermelhas , agora dormiam ao meu lado .
Finalmente !

_Teresa!! Eu vou trabalhar ... acorda ! tens que ir ...
_ Sim mãe ...estou a ir ...

Depois de acordar, ligava ao Zé...
“Olá é a Teresa...o Zé está?”
“Olá Teresa.... não, o Zé já foi para o Liceu.”
“ Há!! Obrigada...e não esperou por mim..? Se calhar tinha aulas cedo ...”

Ía sozinha ... esmagava as folhas no caminho ,sujava as galochas na terra e afogava-as em poças de água , sempre gostei do ruído das folhas secas.
A chuva caía devagarinho , chuva de “molha parvos” ...sorrria sozinha .

No autocarro, sentava-me sempre no segundo andar , olhando pela janela embaciada, via os passeios molhados e as árvores dançavam sem música. Fechava os olhos e quase adormecida , pensava em inventar uma vida, só para aquele dia ...
Nessa altura era assim mesmo , vivia um dia de cada vez .
Bastava-me pouca coisa .

O autocarro verde parava na paragem mesmo em frente ao Liceu. Saía e corria para o café mais perto , comprava tabaco e fósforos ...
_ Era um SG Filtro e uma caixa de fósforos das grandes, por favor ...

Entrava no Liceu, contente por dentro ... e distante por fora
Na sala de convívio , no meio de samarras de pele de raposa, tentava descobrir o Zé ...
Passava por toda a gente sem ver ninguém...
Tocava o “toque de entrada” ... tocava alto e estridente na sala de convívio ...eu ...simplesmente não o ouvia ...

_ Já chegaste Teresa !
Sorria-me e olhava-me pelo meio de dois enormes lagos azuis
_ Cheguei mesmo agora , não sabia que vinhas mais cedo...
_ Dá-me um cigarro ...
_ Mas ... tocou agora para a entrada ...
_ Não faz mal, não vou a esta aula ... tu vais ?

Tirava o maço de cigarros, com muito jeitinho , de dentro do bolso “Kanguro” da minha espécie de casaco azul
Abria o maço devagar , gostava de ficar com o plástico no maço .

_ Não ..não vou ...fico aqui contigo .

Sentados no degrau da sala de convívio, de mãos dadas, fumávamos cigarros quase sem dizermos nada ... acendíamos fósforos e deixávamos que ardessem até ao fim . Esborratávamos a palma da mão esmagando o pau de carvão, inventando letras na figura que se desenhava.

_ É um “C” !! calhou-te um C ... é suposto sair, na palma da mão, a primeira letra do nome do rapaz de quem mais gostas ... depois de esmagares o fósforo queimado ... calhou-te um C !
Eu ria ...
_ É muito difícil fazer um Z.... !
Sorrias-me e fazias bolinhas de fumo.

Eu fazia um ruído de borracha, com as minhas galochas vermelhas , no meio do silêncio que enchia a sala quase vazia .

_ Ensina-me a fazer isso , Zé ...
_ Se parares de fazer barulho com as galochas ...

Ensinavas-me com paciência , e assim se passava mais uma hora sem aulas .
Tocava para a saída . Continuávamos sentados no degrau, indiferentes ao barulho que começava .
Já não se ouvia o ruído de borracha e eu já sabia fazer argolas de fumo.
Pediam-me cigarros, eu dava ...
Ainda de mãos dadas, viviamos no meio de gente, aqueles dez minutos de intervalo .

Soavam outra vez as campainhas , olhei para ti.
_ Vais a esta aula ...?
_ Se calhar vou .

Depois do beijo de despedida , ficava a ver a multidão estridente a sair da sala .
Ainda sentada no degrau frio, fiquei sozinha comigo .

_ Teresa , não vais à aula ?
_ Não ... não me apetece ... eu espero aqui por ti

Comia bolos de arroz. Agora só comigo , escrevia “coisas” que me vinham à cabeça, num bloco pautado com um castelo desenhado na capa.

Escritos meus que ninguém lia...

Faltava à aula , inventava a minha história num papel já molhado e meio enxovalhado pela chuva miudinha .

TMQ

…mesmo que tu fingisses que não me vias

Apanhávamos um autocarro verde de dois andares
íamos sempre para o andar de cima, subíamos aquela escada em caracol a correr, eu atrás de ti, tropeçava no meu cachecol comprido, daqueles intermináveis que eu fazia
lembras-te? Pensava sempre em fazer um para ti...
acendíamos cigarro que se apagavam nos cinzeiros de metal. Acendiamos só por acender...




Seguíamos para casa
apanhávamos sempre um de dois andares!
Tinha que ser de dois andares!

Os bancos de napa preta, escorregadia, a cor dos bancos sintéticos, realçavam o preto nos teus olhos.
O revisor que vinha cobrar o bilhete e nada dizia, e o cheiro... o cheiro a napa e a fumo…e o frio...
recordo o frio que me era tão agradável.




Fazíamos aquela viagem sem pressa, depois das aulas, seguíamos assim deitados no banco de trás, despreocupados com tudo porque nada nos parecia preocupar.
Aprendíamos a fazer argolas de fumo...




Apanhávamos sempre um verde de dois andares, que nos levava de casa para o Liceu, e do Liceu para casa.
Tinha que ser desses.




As tardes eram por nossa conta, ouvíamos música, fumávamos cigarros uns atrás dos outros...acabavam...
e amarrotávamos as embalagens de sg filtro



Comprávamos discos de vinil na Discoteca Roma. O último disco importado e encomendado por nós, vinha de Londres!!
juntávamos todos os escudos que conseguíamos para o comprar.


Passávamos as tardes, em casa de um de nós.
Daquele que tivesse a melhor aparelhagem...Pionner , ou assim...
geralmente era na tua
eras tu quem tinha os melhores discos e o melhor gira discos.

Ouvíamos o disco, que rodava vezes sem conta no prato da aparelhagem, eu fixava o rodar estonteante do vinil



As agulhas gastavam-se rapidamente de tanto uso, e começavam aqueles ruídos irritantes de “batata frita”, lembras-te?
Aqueles ruídos que tu não suportavas…


E tinhas que ir a correr comprar outra agulha … eu esperava por ti, sem mesmo tu saberes que te esperava , tu ias e vinhas sempre a correr …tremias sem querer…e sem eu saber porquê...



Ouvíamos todas as faixas, sem nos cansarmos de nada, porque nunca nada nos cansava
o disco rodava com o som alto… até começar a anoitecer.



Depois de para mim, deixar de ser aquele dia...
Eu apanhava o 21... e ia para casa, esperando pelas 8 horas da manhã do dia seguinte.
A hora que apanhava o autocarro verde de dois andares, que me levava ao Liceu
que me levava outra vez ao teu mundo ...



Quando o perdia, ia a pé, devagarinho...
com as minhas galochas vermelhas, cantarolando baixinho as músicas do disco novo
sabia-as de cor!
E cantava-as para ti, mesmo que tu não me pudesses ouvir.


Esperava que as manhãs passassem depressa.
De tarde ouvia, olhando os teus olhos cor de azeitona , aquele último disco.
E tu parecias nem dar por nada… nem por mim…parecia que nem estavas ali…


Lembras-te?
Apanhávamos aquele autocarro verde de dois andares e íamos sempre para o andar de cima.
Subíamos aquela escada em caracol, a correr, e riamos, riamos muito….
Depois deitávamo-nos no banco de trás …e fumávamos cigarros, só para os apagar naqueles cinzeiros metalizados… e eu, esperava pelas tardes …pelas horas que passaria imóvel a olhar para ti


…mesmo que tu fingisses que não me vias , mesmo que me parecesse que não estavas ali, eu ouvia isto, olhava os teus olhos tão pretos, sem tu dares por mim…
sem tu dares por nada ...


Teresa Maria Queiroz

Vale do Silêncio


Andei por ali , por aquele caminho, tantas e tantas vezes.
Naquele Vale do Silêncio demasiado silencioso....

De mão dada contigo a rir e a gargalhar, lembro-me que eu ria mais que tu...
Vínhamos da escola que era depois dali, daquele silencioso caminho.
Andávamos lado a alado , eu marcava o passo contigo.

Caminhávamos tão devagar, sem pressa nenhuma de chegar a lado nenhum …
Tantas vezes por ali passei, de mão dada contigo, andava sem sequer saber porquê…

Disseste-me que tantas vezes esperavas por mim... não me lembro...

Ria-me contigo sem saber de quê.

E tão pouca coisa já me deixava ser feliz.
Lembro-me que era feliz...

Naquele
caminho, quando lá passei hoje, tentei recordar o outro nosso passeio
que nesse nosso tempo, não sabíamos que um dia iria terminar.
Passo por ali tantos anos depois.
Pensando em tanta gente que já me disse adeus.

A saudade que nessa altura eu não sabia um dia vir a ter.
Hoje ela bateu-me à porta.e eu não quis abrir...

Arrombou a minha porta, e entrou por ali dentro sem pedir licença a ninguém!

Passei hoje por ali, está igual ao que já foi.
Está igual ao que ainda é.

Ali apanhávamos folhas secas pelo caminho, ali as espezinhávamos já mortas.
As nossas folhas amareladas de Outono.

Andava contigo por ali, com as minhas galochas vermelhas, aquelas que nunca se separavam de mim :)

Ali...andei de mão dada... e há tanto tempo que não me lembrava.

Ali andámos de mãos enlaçadas...
Não havia perigo naquele caminho, naquele não...
e eu, deixei de o seguir há tanto tempo

Hoje recordei quem um dia me disse adeus, não por querer, mas por não mais poder por cá ficar.

Hoje eu sei, aprendi hoje!

Hoje sei que há quem nunca nos diga adeus, mesmo depois de desenlaçarmos as mãos
Mesmo depois dos nossos caminhos se
confundirem..
.mesmo depois de tudo
mesmo depois de te calares...
mesmo
depois de eu quase nunca te falar…

Mesmo depois de eu... tantas coisas não conseguir recordar…

tu avivas-me a memória…sem saberes...

Hoje, pisando as pedrinhas cinzentas daquele caminho, senti o mesmo
o mesmo
que senti, quando um dia as pisei contigo.

De mãos dadas, agarrando sonhos de quem era quase criança, sonhos que nem sabíamos estar a ter.

Mãos que se davam e não se largavam.
Nessa altura era assim, andávamos sempre de mãos dadas ....
E
esse enlaçar de mãos, esses beijos quase sem sabor, por não sabermos.

Pensamos esquecer no tempo
e o tempo, de repente,deixa de o ser...


Esse
descuido nos sentires, estava todo lá...
naquele caminho que fazíamos
da escola para casa, de mãos entrelaçadas ,esmagando as folhas ao
passar
e sem qualquer vento frio, que nos conseguisse travar o andar.

Seguíamos até ao fim das nossas vidas...
e seguimos, por caminhos tão diferentes...

Hoje,
passando por ali, recordei a textura e a secura das tuas mãos, senti-as
como se as tivesse agarrado naquele instante, recordei o teu olhar....

Hoje, soube que nunca tinha olhado para ti...
como hoje, eu gostaria de ter olhado
Recordo o tacto das mãos, o sabor do beijo, e um olhar que não percebia....
Recordei tudo, assim sem ninguém me avisar.


Porque a saudade bateu à minha porta, com uma mala cheia de tudo o que eu não lembrava
Só porque hoje, eu tive a certeza, que quem me amou, nunca me dirá adeus.
Passaram anos, tantas vidas que passaram por ali.


Naquele Vale do Silêncio, passaram almas diferentes que se juntavam em mãos tão carentes...

Só porque hoje, eu tive a certeza, que há tantas formas de amar!
Que o amor se perpétua no tempo, e não morre, mesmo andando por outros caminhos.

Porque hoje eu sei que se te chamar, tu vens... mesmo sem saberes...
depois de tudo o que nem me lembro, e que tu recordas tão bem.

Porque
hoje eu tive a certeza, que os namorados quase crianças que enlaçam as
mãos, mesmo sem se aperceberem, ficam unidos para sempre.

Porque hoje percebi, ao passar por ali, que o “para sempre” existe ….
e que o caminho ficou ali, parado no tempo...


Obrigada por nunca me dizeres adeus.... mesmo sem já o poderes fazer
um beijo para ti aí onde estiveres....

TMQueiroz

Costumava ser na garagem do amigo do "lingras"

Costumava ser na garagem do amigo do "lingras",ali mesmo ao pé da minha casa.
Quase todos os sábados à tarde organizávamos as "festas de garagem", nas garagens de quem morava em vivendas que tinham garagem :).

Combinávamos tudo durante a semana no Liceu, faltávamos às aulas e ficávamos na sala de convívio, no D.Dinis a combinar a festa.
Eu sentada, fumava e olhava para as minhas galochas vermelhas, fumava-se SG Filtro...

(acho que houve um ano que chumbei por faltas.. eu sei--- eu sei--- não sou exemplo para ninguém! )

Costumava ser nas garagens das vivendas onde vivia o amigo do "lingras", se bem me lembro ...

Montávamos os gira-discos com as colunas ao lado , num cantinho da garagem.
Revestia-mos as lâmpadas com o papel vermelho e transparente do queijo flamengo que roubava-mos em casa.

... Teresa, para que queres isso do queijo?!
...Para nada mãe, vou deitar para o lixo ! :) :)

Montava-se a mesa, uma porta de madeira deitada em cima de bancos.
Já servia para os copos de plástico e para as garrafas de sumo e cerveja.
Sumo para as meninas, cerveja para os meninos.

E no final sobrava o sumo todo!

....Onde vais Teresa?
.... Vou à festa na garagem do amigo do "Lingras"... (dizia a medo...)
.... Ma quem é o "lingras"? e o amigo do "lingras" ??

não respondia

.... Mas voltas antes das sete, está bem ?
.... Está.
(voltava lá para as nove ... ou dez...ou doze ...)

Começava a festa.
Aquelas festas só tinham aquilo que fazia falta.
Musica assim como aquela ...
slows, onde nos encostávamos uns aos outros meio adormecidos pelas cervejas.

( misturavam cerveja com os ansióliticos que roubavam às mães )

Geralmente era ele que se encarregava de escolher a música e passava toda a tarde misturado em discos de vinil
tão lindos e tão incómodos ...

sabia escolher as músicas
sabia como ninguém............


eu ficava ali ao lado, a olhar....................a olhar................................

........................... para o rapaz que metia a música nas festas de garagem e não gostava que a namorada dançasse slows com os outros rapazes mas a namorada estava-se mais ou menos nas tintas e dançava na mesma e também queria dar beijos agarradinha durante as músicas mais calminhas e não podia porque o namorado estava sempre a olhar e a fazer cara de mau e a namorada até era gira e estava sempre a ser convidada para dançar e sem o namorado a ver de vez em quando abraçava com mais força um ou outro rapaz mais giro mas não podia dar aqueles beijos que queria porque o namorado que metia a música na festa nunca dançava com ela e nunca gostou de dançar.

uffffffffff.......... costumava ser na garagem do amigo do Lingras


Teresa Maria Queiroz