“_ Sabes quem morreu, Teresa ?
Virei-me.
_Não
_O Zé Chinês ...
_Morreu??!!....
_ Estava já há que tempos no hospital...morreu, com SIDA.
Sem palavras e um aperto , um desconsolo, uma raiva fininha. Mais um... “
O quarto do Zé era algo muito especial, passávamos tardes inteiras a ouvir música baixinho, iluminados por luzes foscas de candeeiros baixos, tapados com panos chineses .
As almofadas e o colchão no chão faziam com que ficássemos todos perto uns dos outros.
Nas paredes , folhas de papel com desenhos cuidados , feitos a tinta da china. O Zé passava dias a fazer um desenho cheio de espirais , círculos e símbolos chineses, tudo preto e branco..riscos grossos...riscos finos..
A luz era vermelha , um vermelho quase escuro.
Falávamos baixinho e devagarinho, naquele quarto tudo convidava a um estado quase inconsciente de slow motion. Eu via-lhes as caras no meio de fumo.
O Zé quase nunca abria a janela, lá em casa estavam todos proibidos de entrar no quarto dele . Assim ficávamos durante horas, nem ríamos , nem gargalhávamos.
Sorriamos .
Na sala ao lado , a mãe do Zé passava a tarde com as amigas a jogar um jogo chinês interminável, de vez em quando ouvia palavras que não entendia ditas por vozes fininhas . As senhoras tomavam chá de jasmim, jogavam seriamente e falavam pouco.
Quando passávamos na sala olhavam-nos com os olhos pequeninos e rasgados e com um sorriso permanente cumprimentavam-nos com um leve acenar de cabeça, quase como uma vénia .
Era tudo tranquilo naquela casa .
_ Vou-me embora para Macau...
_ Vais ?! Quando?!
_ Vou este fim de semana. O meu pai mandou-me chamar, diz que estou lá melhor do que aqui...
_ E vais assim sem mais nem menos ?!
_Sim vou , durante uns meses...
Eles falavam baixinho e eu ouvia calada.
O pai do Zé era militar e estava em Macau já há muitos anos, a família estava toda em Lisboa.
Agora o Zé ia para Macau.
Acabavam-se as tardes tranquilas, já começava a ter saudades do seu sorriso afável e da sua simpatia tão natural.
_Ok , mas vê lá ...aquilo lá não é fácil...
_ Sim eu sei, o meu pai já tem tudo preparado para mim.
_ Vamos contigo ao aeroporto !
_ Não, não quero lá ninguém. Despedimos-nos hoje , aqui.
_ Ok, mas quando vieres vamos esperar-te ..
_ Combinado.
Passaram meses e o Zé continuava em Macau, de quando em vez sabíamos notícias dele através da mãe e do irmão . Mas não muitas, que eram todos de poucas falas .
Por vezes escrevíamos postais divertidos, todos em conjunto, que metíamos no correio , comprávamos selos na papelaria. Inventávamos “parvoeiras” para o Zé , e contávamos tudo o que por cá se ia passando.
Agora sem o quarto dele "matávamos" as tardes à porta do prédio.
_ O Zé chega amanhã !
_ A Sério ?? vamos ao aeroporto buscá-lo.
Combinámos a viagem , a pé, até ao aeroporto. Fizemos sandes de fiambre e comprámos laranjinas na mercearia, preparávamos a excursão para o aeroporto.
Acordámos de manhã , e com tanta excitação já não pensámos em mais nada, era o dia em que o Zé chegava.
Nem ele imaginava o vazio que tinha cá deixado. A sua presença calada enchia-nos de sossego.
Tínhamos saudades.
Em romaria fomos para o aeroporto horas antes do avião chegar.
Sentados no chão , comíamos as sandes , ríamos e recordávamos todas as histórias do Zé, o seu quarto, os seus desenhos, a sua companhia .
O Avião chegou e fomos todos para a porta de desembarque .Lá ao fundo, víamos uma figura pequenina , de cabelo muito preto, com uma franja comprida que lhe tapava os olhos e que ele continuamente atirava para trás com a palma da mão.
O Zé chegou sorridente, mais magro e com um rádio enorme numa das mãos . Era a sua bagagem de mão.
Abraços, beijos , risos e gargalhadas.
O Zé estava feliz , nem esperava uma recepção tão entusiasta.
_ Então não trazes bagagem ?!
_ A minha bagagem é esta , está aqui tudo o que preciso...
Olhámos uns para os outros sem perceber, e sem fazer caso continuámos a conversar a perguntar , a querer saber tudo . Como era em Macau ? ..a Vida? ...as pessoas...? gostaste de lá estar? E os casinos ?...foste aos casinos ?.... e a língua ? falavam muito chinês ? ..já aprendeste chinês ...? e estiveste a trabalhar, lá?...e o teu pai...? e vivias onde, mesmo na cidade?
Tantas perguntas que ficavam sistematicamente sem resposta. O Zé sorria ia dizendo que sim a tudo, e estava ansioso para voltar a ver o seu misterioso quarto.
Continuámos a romaria, agora no sentido contrário.
Todos a falar ao mesmo tempo, e o Zé calado, com o seu rádio enorme que me pareceu pesar muitíssimo .
Chegámos ao prédio.
Finalmente o Zé estava em casa .
Começaram todos a dispersar...
_Bem, vou andando tenho que ir estudar ...
_Eu também vou....
_Eu Também... adeus Zé amanhã contas como foi , hoje estás com um ar cansado ...
Ficámos só nós os três . Amigos de toda a vida .
O Zé agora sorria com um sorriso rasgado.
_ Querem vir até lá a casa?
Olhámos uns para os outros...
_ Sim vamos ...
Sentados em almofadas, novamente no quarto mágico, observávamos o Zé a “abrir” o rádio com muito cuidado.
Com uma chave de parafusos, desaparafusava tudo com “paciênciade chinês”. Não dizia nada , só sorria .
E nós olhávamos um para o outro sem perceber nada .
_ Espera, já vais ver.
Enquanto eles falavam eu ia olhando os desenhos na parede, já tinha saudades.
Finalmente o rádio estava todo desmanchado...
_ O que é isso, Zé ?!
Dentro do rádio saíam pequenas embalagens de plástico, uma qualquer coisa lá dentro , entre branco e acastanhado.
Eu olhava embasbacada .
_ Heroína.
_ Heroína ?! Mas tu estás maluco ?? com isso tudo dentro do rádio...se fosses apanhado ias de “cana” uma data de tempo... onde é que arranjaste isso tudo..? e para quê ...não me digas que...
_ Tinha que trazer. Em Macau não há haxixe, quase nunca se encontra... e a heroína anda para lá aos pontapés e é muito mais barata ... troquei o haxe por isto... E tinha que a trazer comigo.
Eu estava completamente arrepiada com aquela conversa e depois de ver tudo aquilo espalhado pelo chão do quarto. Um quarto tão misterioso, tão “nosso”... e que em pouco tempo se iria transformar em nada.
Não dizia nada , só ouvia e quanto mais os ouvia falar mais assustada ficava .
_Bem, vou ter de me injectar, estou a ficar aflito.
_ Está bem ... nós vamos andando...
_ Fiquem aqui comigo...
O Cenário era “de filme”, agora aquela meia luz avermelhada já não me acalmava , parecia que gritava sem se ouvir .
O Zé começou por tirar uma seringa enorme dentro dum estojo de metal, junto da seringa estava um garrote de plástico amarelado. Começou a desfazer a droga numa colher de sopa, aquecia a colher com fósforos grandes que se iam apagando.
Eu arregalava os olhos e nem queria acreditar que ele se fosse picar com aquilo.
Já tinha ouvido falar de drogas pesadas, não muito... sabia que quem se viciava , destruía a vida , roubava , fugia, mentia ... naquela altura ainda não sabíamos como aquilo acabava .
Depois de tudo preparado , e antes de se injectar , o Zé na sua genuína simpatia e boa educação... disse:
_ Querem...? estendia-nos o braço que segurava a enorme seringa.
Vi uns enormes olhos pretos a olhar para mim, parecia que me interrogavam... calados , esperavam a minha resposta .
_ Eu não! Disse num sussurro gritado e assustado.
_ Eu também não Zé ... Tu vê lá isso .... ainda vais acabar mal .
_ Não te preocupes, eu tenho tudo controlado, só tenho que ter cuidado para não injectar mais que o costume...tenho medo é das overdoses...
Levantei-me num pulo .
_ Vamos embora ?! tenho que ir para casa , já está quase de noite .
_ Vamos sim, eu levo-te ... adeus Zé, até amanhã, vou levar a Teresa. Depois falamos ...
Fomos calados até à paragem.
Ouvíamos os ruídos do estômago um do outro, os soluços contidos e o ranger dos dedos .
Chegou o 21.