quinta-feira, 10 de março de 2011

Não me lembro de quem lá esteve comigo.

_ Vou à rua com a cadela …
_Vai, mas vê lá a que horas vens !
_ É só um bocadinho…

Era assim quase todas as noites, depois do jantar lá íamos para a rua , com o pretexto de passear a cadela , ficávamos até podermos nas andanças dos dizeres ; dos disparates inocentes; das gargalhadas reconfortantes , misturadas com fumo de cigarros meios fumados.
Naquela altura os cigarros eram pequeninos e fumavam-se num instantinho.

Sentados nos muros dos prédios, fazíamos frente ao frio e à chuva.
De Verão ou de Inverno, ninguém nos tirava o nosso passeio nocturno que se prolongava nas horas, sem darmos por isso.

_ Está tanto frio Teresa, leva um casaco, e vê lá a que horas vens !
_ Está bem mãe …eu venho cedo, vou só aqui à rua um bocadinho…
_ Mas quem é que lá está, tu vê lá! E sempre gostava de saber o que vão fazer para a rua com este tempo…
_ Já venho mãe !

Na rua , sentados em fila , nem sentíamos o frio dos muros de pedra .
Não havia tempo a perder, e tanta coisa que ainda não sabíamos dizer … mesmo calados , enriquecíamos-nos só com o calor dos olhares e o som de gargalhadas aparvalhadas .

_ Vamos fazer uma fogueira?!
_ Agora? …estás parvo ?! está quase a chover e daqui nada tenho que ir para casa …
_ Não vais nada para casa, temos aí uma festa para ir… é ao pé da Costa da Caparica.
_ Vocês estão malucos!!?? Eu não posso ir , a minha mãe mata-me !
_ Inventa qualquer coisa, vai lá estar toda a gente.

Imediatamente começava a inventar mil possíveis desculpas, mas nenhuma me parecia credível.
Não gostava de mentir.
Nem sabia, corava na primeira palavra.
Como é que eu podia dizer que queria ir a uma festa, à noite?! Nada me ocorria .

_ E como é que vamos para lá ?
_ Vamos de carro, com um amigo do Zeca.

Cada vez se apresentava mais difícil a construção meticulosa da mentira.

_ Está bem, esperem por mim, vou só por a cadela a casa.

Com passinhos pequenos, demorava-me no curto caminho e treinava mentalmente a mentira descarada.

_ Mãe, vim só trazer a cadela. Vou a casa da Ana , pode ser ?

Nem me voltava só para não ver a sua cara com um enorme não, desenhado.

_ A casa da Ana? Qual Ana?
_A Ana, mãe. Não sabes quem é? Mora mesmo aqui no prédio do jardim, no “comboio parado” .Sabes perfeitamente, já cá esteve em casa imensas vezes…

Mentia.
Uma mentira pintada com o vermelho da minha cara, que tentava esconder a todo o custo no capuz do casaco azul. Nem saía da entrada da porta.

_ Eu já venho mãe, não te preocupes que já venho.
_ Está bem, mas estás cá antes da meia noite, não te quero por aí sozinha.
_ Não vou sozinha, vamos todos…
_ Todos ?! Mas quem é que vai?
_ Sabes muito bem mãe, os do costume. Estamos sempre aqui na rua, à noite.

Tantas perguntas, a minha mãe fazia muitas perguntas … que invariavelmente ficavam sem respostas claras.

Fechei a porta muito depressa e corri pela escada abaixo.
Na rua já me esperava um Fiat 600, daquela cor que nem é branco nem beije nem é nada.
Estavam todos encafuados dentro do carro, a música no rádio. A Blondie cantava sem parar, na fita duma cassete já gasta .

Entrei , sentei-me nas pernas de alguém , nem sabia muito bem para onde ia.

“Costa da Caparica … mas é tão longe , e a que horas é que eles vêm para casa “, pensava conscientemente, reconfortando-me na inconsciência que me enchia de qualquer coisa, a que pensei chamar “nervoso miudinho”.

A festa era num apartamento em frente ao mar, mesmo na primeira linha.
A música gritava sem se importar com os vizinhos, era sexta-feira dia de festas e barulho.

Entramos todos duma vez e enchemos o resto do espaço que restava no mínimo apartamento de praia.
Uma hora depois já não sabia muito bem onde estava, nem que horas eram e deixei de me preocupar com o que se passava para lá daquela porta e daquelas janelas viradas para o mar.

Não me lembro, não me lembro nada do que se passou nas horas em que ali estivemos.
Alguém cozinhava, o odor chegava-me várias vezes, algo parecido com feijoada à transmontana, nunca mais esqueci o odor...

Não me lembro se cheguei a comer, não me lembro dos AMIGOS DO ZECA, não me lembro das caras, nunca mais me lembrei.
Não me lembro de quem lá esteve comigo.
Só me lembro de ter ido.

Voltámos para Lisboa no mesmo carro, os mesmos, encafuados uns em cima dos outros.
Não sei que horas eram, mas já passava muito da meia noite, mesmo muito… seguramente.

Cheguei à Cidade da Beira, quieta e em silêncio.

Tudo dormia , os passeios, os poucos carros por ali estacionados, todas as casas dormiam no silêncio do escuro. Caladinhas.

Menos uma.
A minha .

Quando olhei para o quarto andar, todas as luzes da casa estavam acesas e brilhavam muito.
Estava até bonita, assim, cheia de luz no meio da noite.
Cheia de vida, contrastava com o escuro mórbido dos outros andares.

Assim vista da rua parecia um palácio, as janelas eram enormes !

Respirei fundo, nem sabia o que me podia esperar.
Tinha assustado toda a gente, ninguém sabia de mim.

Procuraram-me em casa duma Ana, que não sabia de nada.

Entrei em casa calmamente, tal e qual como se fosse meia-noite e nada se passa-se.

_ Onde estiveste Teresa ? Estamos aqui todos há horas sem saber nada de ti!
_ Estive em casa da Ana , mesmo aqui atrás, no “comboio parado”.

Escondia a cara e comecei a rir, a gargalhar com a minha mentira. Decididamente eu não sabia mentir.

_ Não existe nenhuma Ana, Teresa! O teu pai que se entenda contigo!

_ É verdade. Não estive com a Ana. Estive numa festa, na Costa da Caparica, não sei bem com quem, nem sei bem onde. Nem sei bem o que se passou, mas lembro-me que alguém cozinhava feijoada na cozinha. Cheirava bem mãe, tu havias de ter gostado.

Voltei as costas a discussões e fui para o meu quarto.

O meu pai veio atrás de mim e tentava fingir que me ia bater, enquanto a minha mãe, se encarregava de fechar todas as luzes que se lembrou de acender ...

TMQ

2 comentários:

momo disse...

gostei muito de leer.
Beijinho

mfc disse...

Pois... fazíamos trinta por uma linha!
E sobrevivemos!