segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

...azul clara, azul escura, azul turquesa...azul escura, azul clara, azul turquesa...




 Vamos fazer o quê ?! ... não me apetece ficar aqui sentada toda a tarde 
_ Vamos ao café ... 
_ Outra vez ?! ..ainda agora lá estivemos ...


Sentadas na sala da Rosa , conversávamos sem quase nada para dizer , abríamos a janela para deixar sair o cheiro a tabaco.
_ Quem é que lá estava ? 
_Onde, no café ? o costume, não viste ?! O Diogo, o Cruz , o Zé chinês e o FL ...
_ O FL estava lá? nem reparei ... Rosa ! apetecia-me ficar apaixonada, assim de repente !
Ríamos e nada tomávamos como ridículo . O sofá era incómodo , mas a nós nada nos incomodava.



_ Embora ao café.
_ Ainda agora disseste que não querias ir ...
_ Agora já quero – sorria com um sorriso só meu , cúmplice comigo mesma .
_ E agora vais-te apaixonar por quem ? hum...deixa-me ver... O Cruz não de certeza, é muito pequenino! Não é nada o teu estilo, O Zé chinês também não me parece... o Diogo nem pensar ! .... só pode ser o Fernando , claro! Vai ser pelo FL ! Vamos ... embora lá ver .
_ Não sejas parva Rosa, essas coisas não são assim...só disse que me apetecia estar apaixonada. Tenho que viver a minha vida toda, apaixonada, senão , não tem graça nenhuma andarmos por cá...




No Brisa do Tejo, mesmo em frente ao prédio da Rosa, a esplanada estava vazia de gente . Na mesa do canto ainda lá estavam todos , uma mesa cheia de cafés bebidos e copos de água já secos, garrafas de cerveja já meio bebidas, meio mortas . 
O Diogo falava alto e “arriscava a vida”, apostado em beber uma chávena de café, cheia de todos os restos possíveis que habitavam naquela mesa. 
Cinza , restos de café , pacotes de açucar, tabaco ,migalhas de bolos, água , cerveja... misturava tudo meticulosamente, com uma colher pequenina e com um cuidado exagerado.
_ Diogo , não és capaz ! 
_ Espera, tenho que mexer tudo muito bem até ficar líquido , depois bebo tudo duma só vez . 
_ Aposto vinte paus em como não consegues beber essa nojeira ! 



O Diogo era mesmo assim, conhecido pelos seus discursos intelectualizados , os seus dentes amarelados e uma inteligência de fazer inveja a muitos, naquela mesa sentados . 
Depois de tudo bem desfeito, o Diogo bebeu tudo até ao fim , levantou-se e foi-se embora . 
_ Cruz, dá cá os vinte paus ...
_ Bebeste aquela porcaria toda ?! estivemos a fazer da tua chávena cinzeiro !!!! ... que nojo Diogo!
O Diogo continuava a sorrir o seu sorriso irónico e amarelo, pegou na nota de vinte e foi-se embora .
_ Vou-me embora, vou estudar .
_ Se te sentires mal diz...



Gargalhada geral ! O FL não ria...



Sentadas nas cadeiras ainda quentes, cruzávamos as pernas e não dizíamos nada na esperança de chamar a atenção de quem estava tão distraído. 
Não deram pela nossa saída , nem pela nossa chegada . 



O FL bebia um café atrás do outro. 
Eu olhava embasbacada para as suas mãos que tremiam como se tivessem vida própria. Era a primeira vez que reparava nas tremuras do FL. 
Tremia e não controlava o café dentro da chávena, entornava tudo para o pires... e pedia outro, e mais outro...
Nunca tinha reparado naquelas mãos, que tremiam em silêncio.
O FL fazia pouco barulho, nunca tinha reparado naquela camisa de xadrez azul , que tantas vezes vestia...



azul claro, azul escuro, azul turquesa...azul claro, azul escuro, azul turquesa...



Nunca tinha repara nas patilhas que lhe tapavam quase metade da cara... nunca tinha reparado que os olhos eram tão pretos. 
Nunca o tinha visto no D. Dinis... 
Naquele dia reparei ,e não descansei de reparar até ao dia em que parou de tremer. 



_ Rosa... já viste bem como o FL treme ? .. nunca tinha dado por isso ... Ele anda no Padre não anda ? Não anda lá no Liceu... nunca o vi lá...
_ Sim, anda no Padre António Vieira, ele e o irmão. Pois treme, sempre tremeu assim.
_ Bolas!! Até faz impressão ... acho que deve andar a fumar demais, ou cafés a mais...
_ Teresa, os gajos fazem uns cachimbos de prata e metem o haxe lá dentro, aquilo fica muito forte, deve ser disso..
_ Deve ser... eles fazem um a seguir ao outro, que eu já vi, é sempre um cachimbo a seguir ao outro...
Saí dali depressa, nunca tinha reparado com olhos de ver , nunca tinha pensado, sempre achei que os rapazes eram fortes , sempre achei que sabiam mais ou menos o que faziam, sempre achei que nos protegiam ...
_ Vamos Rosa, embora até tua casa. Estou farta de estar aqui .



Outra vez, sentadas no sofá amarelado , na sala da Rosa.
Eu olhava pela janela e via as pessoas passarem na rua , não sabia o que pensavam , desejei nunca saber. 
Olhava para além de nada, fechava os olhos e só e via as mãos trémulas que não sabiam segurar a chávena , os olhos pretos ...envergonhados...



azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul escuro, azul claro, azul turquesa...



Nunca tinha reparado, nem nunca tinha pensado com modos de pensar.
A Rosa fumava cigarros, uns atrás dos outros.
_ Assim, vou acabar o maço antes da minha mãe chegar a casa...
_ A que horas chega a tua mãe, Rosa?



Acendia fósforos e deixava que se queimassem no cinzeiro.



_ Só quando estiver de noite...
_ Vou-me embora.
Chegava a hora de ir para casa, apanhava o 21 e depois andava um bocadinho, tinha de ir antes que ficasse muito escuro



Saí de casa, a Rosa morava no Rés do Chão, assim que abri a porta da rua estavam todos sentados nas escadas, meio escondidos pelas plantas altas que a porteira teimava em cuidar.
Construíam cachimbos de prata, desfaziam tabaco nas palmas das mãos ...



_ Já vais Teresa ...
Olhei e vi uns olhos enormes, maiores que o normal, que me olhavam para além de mim.
_ Já. Tenho que ir antes que fique de noite. E já vou atrasada.
_ Vais apanhar o 21...?
_ Vou.
_ Espera, eu lévo-te à paragem ...
Mãos trémulas dentro dos bolsos das calças, era assim que ele costumava andar , sempre de mãos nos bolsos, agora eu percebia porquê.



...azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul claro, azul escuro, azul turquesa...



_ Não é preciso, é já aqui ...
_ Não ! Eu levo_te
Estavam todos em silêncio, com muita atenção ao diálogo que mantínhamos, timidamente, quase só por sílabas.
O Fernando nunca falava muito. Comprava todos os discos que podia , e escolhia músicas como só ele sabia escolher. Raramente lhe ouvia a voz.



_ FL ! Vais levar a Teresa?? !! .... não acredito !..
Outra gargalhada geral.
_ O Baleia está apaixonado !!!!!
Eu corava e sorria, só queria fugir dali para fora. Senti uma mão firme e suave que me segurava o braço, sem força.
_ Vamos, eu levo-te!



Na rua estava frio e o FL tremia dentro da sua camisa de xadrez, azul clara , azul escura, azul turquesa...



...azul clara, azul escura, azul turquesa...azul escura, azul clara, azul turquesa...



_ faz-me impressão que tremas tanto, não gosto nada de ver. Senti assim um aperto na barriga, hoje... quando olhei para ti...sabes ..? nunca tinha reparado ...
_ Deixa lá, não te preocupes ...um dia passa... eu já tinha reparado em ti ...muitas vezes...
Falava sem olhar para mim, já não me olhava nos olhos .



Engolia as palavras, o meu peito saltava , fazia tanto barulho que tinha medo que se ouvisse cá fora.
Mantinha o meu olhar , aquele que parece não querer dizer quase nada .
Olhei para os seus enormes olhos pretos e sorri-lhe.
_ Vem aí o 21...



_ Até amanhã Teresa ...amanhã vens cá ? ...a casa da Rosa... ou aqui ao prédio, sei lá...costumas vir ...?



Fiquei calada , não encontrava as palavras certas.
E de repente , antes que o autocarro partisse ...
_ Sim venho, venho todos os dias ...se me prometeres que vais deixar de tremer.



Entrei no 21, atrás de mim entrou o FL quase sem eu dar por isso .



_ Vou contigo até tua casa ...ainda tens de andar um bocado desde a paragem, não tens ?... não quero que vás sozinha. Eu depois venho a pé , até me faz bem ...queres ir amanhã a Sintra , de comboio, a Sintra...queres?
_ Quero...



E desde esse dia, nunca mais apanhei o 21 sozinha . 
E desde esse dia , o FL começou a deixar de tremer .



...azul claro, azul escuro, azul turquesa... azul claro, azul escuro, azul turquesa...
azul claro, azul escuro, azul turquesa....



TMQueiroz


Sem comentários: