segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

…mesmo que tu fingisses que não me vias

Apanhávamos um autocarro verde de dois andares
íamos sempre para o andar de cima, subíamos aquela escada em caracol a correr, eu atrás de ti, tropeçava no meu cachecol comprido, daqueles intermináveis que eu fazia
lembras-te? Pensava sempre em fazer um para ti...
acendíamos cigarro que se apagavam nos cinzeiros de metal. Acendiamos só por acender...




Seguíamos para casa
apanhávamos sempre um de dois andares!
Tinha que ser de dois andares!

Os bancos de napa preta, escorregadia, a cor dos bancos sintéticos, realçavam o preto nos teus olhos.
O revisor que vinha cobrar o bilhete e nada dizia, e o cheiro... o cheiro a napa e a fumo…e o frio...
recordo o frio que me era tão agradável.




Fazíamos aquela viagem sem pressa, depois das aulas, seguíamos assim deitados no banco de trás, despreocupados com tudo porque nada nos parecia preocupar.
Aprendíamos a fazer argolas de fumo...




Apanhávamos sempre um verde de dois andares, que nos levava de casa para o Liceu, e do Liceu para casa.
Tinha que ser desses.




As tardes eram por nossa conta, ouvíamos música, fumávamos cigarros uns atrás dos outros...acabavam...
e amarrotávamos as embalagens de sg filtro



Comprávamos discos de vinil na Discoteca Roma. O último disco importado e encomendado por nós, vinha de Londres!!
juntávamos todos os escudos que conseguíamos para o comprar.


Passávamos as tardes, em casa de um de nós.
Daquele que tivesse a melhor aparelhagem...Pionner , ou assim...
geralmente era na tua
eras tu quem tinha os melhores discos e o melhor gira discos.

Ouvíamos o disco, que rodava vezes sem conta no prato da aparelhagem, eu fixava o rodar estonteante do vinil



As agulhas gastavam-se rapidamente de tanto uso, e começavam aqueles ruídos irritantes de “batata frita”, lembras-te?
Aqueles ruídos que tu não suportavas…


E tinhas que ir a correr comprar outra agulha … eu esperava por ti, sem mesmo tu saberes que te esperava , tu ias e vinhas sempre a correr …tremias sem querer…e sem eu saber porquê...



Ouvíamos todas as faixas, sem nos cansarmos de nada, porque nunca nada nos cansava
o disco rodava com o som alto… até começar a anoitecer.



Depois de para mim, deixar de ser aquele dia...
Eu apanhava o 21... e ia para casa, esperando pelas 8 horas da manhã do dia seguinte.
A hora que apanhava o autocarro verde de dois andares, que me levava ao Liceu
que me levava outra vez ao teu mundo ...



Quando o perdia, ia a pé, devagarinho...
com as minhas galochas vermelhas, cantarolando baixinho as músicas do disco novo
sabia-as de cor!
E cantava-as para ti, mesmo que tu não me pudesses ouvir.


Esperava que as manhãs passassem depressa.
De tarde ouvia, olhando os teus olhos cor de azeitona , aquele último disco.
E tu parecias nem dar por nada… nem por mim…parecia que nem estavas ali…


Lembras-te?
Apanhávamos aquele autocarro verde de dois andares e íamos sempre para o andar de cima.
Subíamos aquela escada em caracol, a correr, e riamos, riamos muito….
Depois deitávamo-nos no banco de trás …e fumávamos cigarros, só para os apagar naqueles cinzeiros metalizados… e eu, esperava pelas tardes …pelas horas que passaria imóvel a olhar para ti


…mesmo que tu fingisses que não me vias , mesmo que me parecesse que não estavas ali, eu ouvia isto, olhava os teus olhos tão pretos, sem tu dares por mim…
sem tu dares por nada ...


Teresa Maria Queiroz

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